13/05/2025

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Sinodalidade começa na escuta da Palavra de Deus: a experiência sinodal da Fazenda da Esperança

Sinodalidade começa na escuta da Palavra de Deus: a experiência sinodal da Fazenda da Esperança

Por César Santos

Texto publicado originalmente na revista Ekklesía Brasil, edição de janeiro-abril de 2022, n. 4, p. 51-54.

Foto: Fazenda da Esperança.

Graças ao Papa Francisco, vieram à tona temas vitais para a Igreja dos tempos atuais como o da sinodalidade. Seus discursos e homilias trazem sempre conceitos como “fraternidade”, “ecologia”, diálogo, “Igreja em saída”.  De fundo, sempre o mesmo princípio, o relacionamento num ângulo de 360 graus, em que tudo e todos entram em jogo, inclusive as religiões, a natureza… Para nós da Fazenda da Esperança, essa “Igreja” é a Igreja que vivemos desde nossas origens. Esse é o modelo de Igreja-Comunhão, Igreja-Trinitária., fundamentada nos relacionamentos.

Nossa comunidade nasceu numa esquina onde pessoas usavam drogas. Mas ela foi motivada pela escuta da Palavra de Deus na comunidade paroquial, ao redor do pároco.  A escuta recíproca sempre foi uma prática naquele período da Paróquia da Glória, em Guaratinguetá (SP), nos anos 1980. Cada iniciativa social nascida no seu seio era decidida por meio de um processo de muito diálogo, quer dizer sinodal. Mas era evidente que tudo isso vinha, antes de tudo, do escutar a Palavra de Deus e colocá-la em prática. Por isso ela, a paróquia, foi palco do nascimento de um carisma novo, o Carisma da Esperança.  

Um desses paroquianos, Nelson Rosendo, aquele jovem que foi até a esquina para conhecer e estabelecer amizade com os drogados, entendeu que deveria sempre compartilhar suas inspirações com o pároco, o franciscano Frei Hans Stapel. Foi assim que ele conheceu uma espiritualidade tipicamente coletiva, ou nos termos atuais, sinodal. Ele mesmo conta:

“Eu me recordo, quando escutava as meditações de Chiara Lubich a respeito do Evangelho, eu entendi que não podia esperar até o outro dia para colocar em prática. Quando escutei a meditação daquela da carta aos coríntios, com a frase ‘fiz-me fraco com os fracos…’, me programei de tal maneira que eu pudesse me encontrar com os jovens que se reuniam naquela esquina de Guaratinguetá para se drogar. Quando vi que deu certo, a alegria era tanta que era impossível não comunicar às pessoas o que eu estava vivendo, de modo especial aqueles que viviam essa mesma vida como a unidade gen[1], minha família, a paróquia e especialmente ao frei Hans, com quem eu dividia a minha vida pelo acompanhamento que fazia com ele ou pela confissão.

Esse desejo de partilhar, de colocar em comum era forte desde o início. Isso impregnou também aqueles que pediram ajuda no início e saíram da esquina, porque queriam parar de usar droga e ficaram fascinados por esse experiencia de não guardar nada para si, inclusive os bens materiais. Logo veio o desejo de morar juntos e colocar tudo em comum.”

Onde a prioridade é o relacionamento fraterno, Deus encontra espaço para atuar. É desse modo que um primeiro jovem pediu ao Nelson ajuda para sair da Esquina. Nelson o levou para dentro da comunidade, o lugar de onde ele também vinha. O primeiro passo foi convidá-lo a diariamente da missa. Depois, apresentá-lo ao pároco e, finalmente, a toda a paróquia. Não demorou para que outros membros daquela Esquina pedissem ajuda. Até o ponto de viverem juntos numa mesma casa, guiados por esse estilo de vida.

A comunhão era elemento constitutivo desse novo “projeto”. Diariamente se encontravam na missa para escutar o Evangelho. Depois jantavam juntos, comunicavam mutuamente as experiencias vividas naquele dia de trabalho e combinavam qual frase do Evangelho viveriam juntos no dia seguinte. 

A escuta mútua era fundamental, bem como a escuta da Palavra de Deus. Aliás, essas eram práticas diárias. Meditar as palavras das Sagradas Escrituras, refletir suas propostas diariamente, depois colocar juntos em prática e, finalmente, comunicar-se as experiencias vividas, era a dinâmica de fundação e que até hoje vigora nas nossas 160 comunidades espalhadas pelo mundo.  Isso se tornou um método pedagógico de transformação pessoal.

Vale a pena agora escutar o que o então pároco e posterior fundador da Fazenda da Esperança sentia desse período. Ele narra que

“o caminho sinodal é para mim ver tudo, decidir tudo, com a presença de Jesus entre nós. A abertura de escutar o outro e interessar-se naquilo que o outro pensa e depois juntos se decide as coisas é o caminho que sempre quisemos.

Eu lembro na paróquia quando havia momentos difíceis. Somente com essa presença de Jesus entre nós podíamos encontrar luz. Cada um quer ter razão, é certo, mas isso não permite uma escuta sinodal, porque vigora os interesses pessoais. Nesse caminho, é importante morrer a si mesmo para escutar o outro. E, assim, descobrir o que Deus quer. Para que Ele se manifeste, precisa estar entre nós.

Um exemplo. Uma noite no conselho paroquial, uma lista imensa de assuntos, e não conseguíamos clima para decidir. Então, pedi para que alguém contasse uma vivência do Evangelho. Não conseguia. Pensei, que não podia começar os assuntos com este clima terrível. Um certo momento disse: Não sei o que está acontecendo. Não temos a presença de Jesus entre nós. Inesperadamente, um começou a dizer que sentia raiva do outro e começou uma discussão entre eles. Até que depois de muita confusão, um finalmente pediu desculpas ao outro. Devagar voltou o clima entre todos. Já era tarde e não conseguimos fazer a reunião. Propus um outro dia e rápido todos se dispuseram para se encontrar de novo. Finalmente, resolvemos todos os problemas. Esse ‘jeito’ de organizar as coisas é a base desse caminho sinodal.”

Dando um salto no tempo, muitos anos depois, quando o projeto caminhava firme, e muitos queriam se consagrar a esse “carisma”, a Igreja pediu que se escrevesse uma “regra de vida”. Era claro que deveriam ter esse mesmo estilo de vida aprendido na paróquia. Utilizaram, então, um conceito vindo da sociedade: o conceito de “família”. Queriam viver numa estrutura da Igreja, mas que se constituísse como uma “família”. Até colocaram o nome oficial dessa “associação de fiéis” como Família da Esperança.  Nos estatutos, parágrafo 7, está assim explicado:

“A Família da Esperança tem como característica o ser família, que se manifesta na convivência fraterna, na acolhida, na partilha espontânea da vida, que alimenta o amor, com o qual Deus nos uniu. Os membros devem estar ligados a uma pequena comunidade, que deve ser semelhante à Família de Nazaré. Nela se esforçam para estabelecer a presença de Jesus, à luz da Palavra do Evangelho ‘Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles’.”

Essa é a base para trabalhar com os mais de 5 mil jovens que vivem em nossas casas espalhadas pelos 24 países onde estamos. E quando falta essa presença de Jesus, como bem explicou acima o fundador, precisa parar tudo para reestabelecer a paz e a harmonia. Inclusive em tempos de crise econômica ou vocacional, se faz a pergunta, para escutar a resposta de Jesus, se o temos presente entre nós e a sua falta não seria a causa de alguns problemas.

A consciência de que caminhamos “juntos” nas Fazendas da Esperança nos leva a decidir passos importantes nessa perspectiva. É assim que faz alguns meses, a partir de inquietações do fundador, todos os responsáveis vindos de várias regiões sentiram que era hora de mudar estruturas e o modo de organizar toda a obra. Passo duro e difícil, mas que se sentia forte que sim, era um passo necessário nesse momento.

Às vezes, as inquietações econômicas nos preocupam, como quando começamos a receber moradores de rua, e que não tinham pessoas para apoiá-los num processo de recuperação. Mas com fé, demos o passo de não pensar no dinheiro. E a providência divina até hoje generosamente chega para continuar essa iniciativa e não parar de receber esse contingente de pessoas totalmente excluídas do processo civil atual que ainda vivemos de pandemia. Se não tivéssemos clareza na decisão, feita de forma “sinodal”, não teríamos nos arriscado tanto. E chegamos à soma de mais de quatro mil pessoas recebidas nessas condições.

Concluo com o testemunho de um desses ex-moradores de rua que, tocado pelos relacionamentos entre todos, decidiu também ele a ajudar outros moradores de rua nesse processo.

“Meu nome é Edmar e tenho 39 anos. Sou da cidade de Mauá (SP). Cheguei na Fazenda em situação muito ruim; me encontrava com grandes problemas com álcool e drogas e já estava em situação de rua. De tanto pedir a Deus pra me tirar daquela situação, surgiu a Fazenda da Esperança. Era o período de pandemia.

Quando cheguei, me senti muito amado, principalmente pelos responsáveis, sacerdotes e os voluntários. Em pouco tempo, aprendi um novo estilo de vida e tudo isso me devolveu a alegria de estar vivo. Hoje, já faz 10 meses que sou voluntário e dou de graça o que recebi de graça.”


[1] Grupo de jovens pertencentes ao Movimento Gen (Geração Nova), expressão do Movimento dos Focolares.

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