O papel de leigas e leigos no processo de sinodalidade eclesial

Por Sandra Maria Luciano Pozzoli[1] e Lafayette Pozzoli[2]
Artigo publicado originalmente na revista Ekklésia Brasil, edição de janeiro-abril de 2022, n. 4, p. 17-22.
Foto: Luís Henrique Marques
Introdução
Estamos vivendo um momento marcante na Igreja, com um convite feito pelo Papa Francisco ao Povo de Deus, isto é, a todas as pessoas que compõem o tecido da Igreja no mundo. Um convite não apenas ao corpo eclesial, mas também aos irmãos das igrejas cristãs orientais, às pessoas de boa vontade e, principalmente, a leigos e leigas. Um convite para “caminharem juntos”, como comunidade, com o desafio de analisar a realidade da Igreja hoje, guiados pelo Espírito Santo, por meio da comunhão, da participação e da missão neste terceiro milênio.
A participação de leigos e leigas no sínodo proposto pelo Papa Francisco, iniciado em outubro de 2021 e com término previsto para outubro de 2023, é uma novidade que pretende identificar, nas diferentes experiências missionárias, questões que ainda precisam ser enfrentadas e aprimoradas para corresponder humildemente à vontade de Deus.
Nesse sentido, apontamos alguns elementos para a compreensão da importância da participação de cada membro do Povo de Deus na construção desse caminho sinodal que quer rever nossos passos e compromissos na Igreja.
O presente artigo trata de uma pesquisa bibliográfica baseada em artigos e documentos da Igreja, sem desconsiderar as experiências pessoais dos autores que têm a fraternidade como foco nos seus afazeres e investigações. O objeto de pesquisa foi demonstrar a sinodalidade como proposta de ação relacional das pessoas com a comunidade de pertença e a importância de sua participação efetiva na vida da Igreja, usando a parrhesia[3] como ferramenta. Este artigo foi organizado em três seções, sendo uma análise com enfoque investigativo nas primeiras duas seções e propositivo na terceira.
1. Aspectos históricos do sínodo: “Para uma Igreja sinodal – comunhão, participação e missão”
Desde o início do cristianismo, as comunidades procuravam manifestar suas experiências por meio de encontros e assembleias. Em meados do século II, aconteceram as primeiras assembleias episcopais, e entre os séculos II e III ocorreram vários sínodos no oriente, em Roma e na África (PINHEIRO, 2020). Porém, em vários momentos a Igreja interrompeu os encontros conciliares. A palavra sínodo “tem sua origem no idioma grego, “sýnodos”, e quer dizer “caminhar juntos” (VATICANO, 2021).
A partir de 1964, o papa Paulo VI, dando continuidade às propostas do Concílio Vaticano II, iniciado com o papa João XXIII, foi retomando a ideia de sínodo. Assim, em 1965, deixou-nos como um dos frutos do referido concílio o Sínodo dos Bispos no Colégio Episcopal de Roma, de forma permanente (VATICANO, 2021, p. 6). A cada três anos ocorre um sínodo, tendo como resultado um documento que é preparado e votado pelos bispos sinodais e, após esse processo, o documento aprovado é encaminhado ao Papa.
O pontificado do Papa Francisco trouxe inovação com a presença de leigos e especialistas que foram convidados a opinar nos documentos finais nos Sínodos dos Jovens (VATICANO, 2018) e da Amazônia (VATICANO, 2019). Essa prática foi diferente dos sínodos anteriores, em que a versão final do respectivo documento era subordinada ao Papa, que poderia aceitar ou não a proposta dos bispos sinodais.
Agora, no presente sínodo, o Papa convida todo o Povo de Deus, presente nas dioceses, para manifestar suas experiências, buscando trilhar e permanecer em um caminho de comunhão e amadurecimento na fé e missão. É nesse sentido que o papa Francisco convocou um Sínodo sobre a Sinodalidade.
O tema desse sínodo é: “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. O Papa Francisco aponta o “caminhar juntos” como uma ação que Deus espera de todos na Igreja neste milênio (VATICANO, 2021). É por meio de análises e reflexões sobre o caminho eclesial na atualidade que será possível entrever formas que possam auxiliar todos da Igreja a viver a comunhão, a promover a participação e a abrir-se à missão.
Este sínodo é um convite para viver um processo eclesial inclusivo com a participação do Povo de Deus, uma característica da atualidade, e uma oportunidade para falar, ouvir e encontrar novos caminhos para uma Igreja que acolhe.
Portanto, entende-se que no processo sinodal, cada fiel, na sua Igreja local, tem um papel integral a desempenhar, pois “[…] pelo batismo e confirmação receberam do Espírito Santo diferentes dons e carismas para a renovação da Igreja.” (VATICANO, 2021). Por isso, esse sínodo já não é apenas uma assembleia de bispos, mas um caminho de todos os fiéis que reflete, a partir da vivência em sua Igreja local, a vontade de Deus no atual momento missionário.
2. Diálogo na Igreja e na sociedade
Há um provérbio africano que diz: “Se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá acompanhado”. Este sínodo quer suscitar o espírito de acompanhador em cada membro da Igreja particular, e este sábio provérbio ajuda a compreender o que o Papa Francisco nos solicita. O diálogo com todos contribui para melhor construir o caminho de todos.
A disposição de visualizar um futuro diferente para a Igreja e para as suas instituições, à altura da missão recebida, está ligada a uma vivência fraterna em que diálogo e discernimento comunitário possam acolher a todos, e que cada um possa participar e dar sua contribuição. Este é o caminho da sinodalidade a que somos chamados, como batizados, a participar.
Nesse caminho sinodal a questão norteadora é:
Como é que este “caminhar juntos” tem lugar, hoje, em diferentes níveis (desde o local ao universal), permitindo que a Igreja anuncie o Evangelho? E quais os passos que o Espírito nos convida a dar para crescermos como Igreja sinodal?” (VATICANO, 2021).
O processo sinodal, que teve a abertura em outubro de 2021, iniciou com a fase de escuta, nas igrejas locais. Para isso, cada bispo foi convidado a organizar em sua região episcopal formas de reunir e ouvir os fiéis, tendo uma pessoa ou equipe de contato para liderar essa fase de escuta local que se encerrará em abril de 2022. Assim, as igrejas locais entregarão suas respostas à respectiva Conferência Episcopal e, as igrejas orientais, em seu sínodo, enviarão uma síntese à Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos para formulação do Instrumentum Laboris I até setembro de 2022. Na sequência, esses documentos serão sintetizados em novas reuniões pré-sinodais para resultar no Instrumentum Laboris II, em junho de 2023, que será finalmente apresentado na Assembleia do Sínodo dos Bispos em Roma, em outubro de 2023 (VATICANO, 2021).
Espera-se que a fase diocesana seja muito rica de testemunhos dos vários setores da sociedade como “paróquias, movimentos laicais, escolas e universidades, congregações religiosas, comunidades cristãs de bairro, ação social, movimentos ecumênicos e inter-religiosos e de outros grupos” (VATICANO, 2021). Todos os trabalhos são liderados pelos bispos em suas dioceses.
Por ser um sínodo com uma modalidade diferenciada da maioria dos anteriores, podemos perceber que, em algumas dioceses, o processo de escuta está ocorrendo satisfatoriamente e, em outras, há problemas com a capacidade de articulação, isso considerando uma pesquisa nos sites de paróquias. Vale ressaltar que o importante é o processo que já foi desencadeado tornando indispensável a figura do leigo.
3. Caminhos: indicações pontuais para os leigos e os instrumentos oferecidos pelo Documento Preparatório do Sínodo
Para ajudar na realização dessa primeira fase de escuta, foi publicado um Vademecum para o Sínodo sobre a Sinodalidade (VATICANO, 2021) que explica todo o processo sinodal, baseado nos documentos da Igreja, e propõe dez grupos de questões norteadoras para as diversas comunidades paroquiais trabalharem e, assim, contribuírem efetivamente para o futuro da Igreja.
Dentre as questões delineadoras, há a preocupação com:
1 – Os companheiros de viagem: Quem são os que caminham juntos?
2 – O ouvir: Como os leigos são ouvidos? Há espaços para a expressão das minorias, mulheres, jovens, consagrados, consagradas?
3 – Tomar a palavra: Quando e como conseguimos dizer o que é importante para nós? Quem fala pela comunidade cristã, como é escolhido?
4 – Celebrar: Como promovemos a participação ativa dos fiéis na liturgia? A oração e a celebração nos inspiram a caminhar juntos?
5 – Corresponsáveis da missão: A comunidade apoia as pessoas envolvidas com a missão? Há colaboração nos territórios?
6 – Dialogar na Igreja e na sociedade: Há espaços de diálogo em nossa Igreja particular? Como são enfrentados os conflitos?
7 – Com as outras confissões cristãs: Que relacionamentos mantemos com os irmãos de outras confissões cristãs? Quais são as dificuldades?
8 – Autoridade e participação: Como se exerce a autoridade no seio da nossa Igreja particular? Como funcionam os organismos de sinodalidade na Igreja particular?
9 – Discernir e decidir: Como discernimos e decidimos?
10 – Formar-se na sinodalidade: Como formamos as pessoas para o exercício da autoridade na comunidade?
Aqui indicamos apenas alguns exemplos de questionamentos para os respectivos grupos. Há vários aspectos que foram levantados para auxiliar na análise das realidades buscando identificar como se pode viver com coerência o Evangelho atualmente, sem excluir pessoas e situações.
Esse exercício de reflexão com certeza não cessará com o sínodo, mas provocará muitas ações no sentido de incluir e acolher nossos irmãos que ainda não se sentem parte dessa grande família que é a Igreja. E esse será, provavelmente o maior legado que esse sínodo deixará como contribuição missionária.
A Igreja é rica de diferentes carismas expressos em várias realidades do mundo. Uma característica no presente sínodo é a participação de movimentos e associações de leigos, os quais foram convidados a participar de todas as fases da caminhada sinodal. Cada um deles trará sua contribuição para a vivência nesse momento histórico na Igreja Católica. Dentre eles está o Movimento dos Focolares, cujo carisma é a unidade, o qual pode dar sua contribuição específica nesse caminho. Alguns pontos de referência para implementação do processo sinodal foram lembrados pela atual presidente do Movimento, Margaret Karran, em outubro de 2021, em Rocca di Papa – Itália. Iniciando com o ato de pedir desculpas e recomeçar sempre quando erramos; renovar o pacto de amor recíproco, que é base no caminho de discernimento, estando dispostos a nos amar como Jesus nos amou. Ela lembrou, ainda, a arte de amar, escutando o outro na disposição de aprender; amar a todos; ser o primeiro a amar; amar como a si mesmo e fazer-se um com o outro, conforme indicou São Paulo (1Cor 9,22), aproximando-se da realidade do outro. Falar com respeito, clareza e sinceridade, características da parrhesia, procurando priorizar os relacionamentos e vivendo o espírito de caridade e de fraternidade.
Cada um de nós, membro da Obra de Maria, é chamado a construir a Igreja, corpo místico de Cristo. Nenhum talento, nem mesmo o menor, pode ficar escondido e deixado de lado: cada um é chamado pelo nome, na unicidade e irrepetibilidade da específica história pessoal, a dar a própria contribuição para o caminho sinodal que iniciamos (KARRAN, 2021).
Considerações finais
Assim, nesse esforço cotidiano em viver as virtudes necessárias para construção do processo de sinodalidade, podemos testemunhar o espírito de família, que quer acolher os que sofrem no mundo pela falta de unidade, pelas adversidades e pela falta de amor.
Entendemos, ainda, que para viver bem esse processo de sinodalidade “Jesus Abandonado” e “a Unidade” são os dois lados de uma única medalha, e quem quiser viver na unidade e pela unidade “sabe se sustentar apenas se apoiando em uma Dor-Amor tão forte quanto a de Jesus Crucificado e Abandonado!” (KARRAN, 2021).
Referências
KARRAN, Margaret. Contribuição do Carisma da Unidade para uma espiritualidade sinodal. Encontro dos delegados da Obra de Maria – Movimento dos Focolares. Rocca di Papa, Roma – Itália: outubro, 2021.
PINHEIRO, Luiz Antônio. A experiência sinodal no Cristianismo antigo dos séculos II a IV. Revista Pesquisas em Teologia – PqTeo, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 373-393, jul./dez. 2020. DOI: 10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p373.
VATICANO. Sínodo dos bispos assembleia especial para a região pan-amazônica. Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral – documento final. Vaticano: outubro, 2019. Disponível em: http://secretariat.synod.va/content/sinodoamazonico/pt/documentos/documento-final-do-sinodo-para-a-amazonia.pdf. Acesso em: 1 fev. 2022.
VATICANO. Sínodo dos bispos: XV Assembleia Geral Ordinária. Os jovens, a fé e o discernimento vocacional, documento final. Vaticano: outubro, 2018. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/synod/documents/rc_synod_doc_20181027_doc-final-instrumentum-xvassemblea-giovani_po.html. Acesso em: 1 fev. 2022.
VATICANO. Vademecum para o Sínodo sobre a Sinodalidade. Manual Oficial de Auscultação e Discernimento nas Igrejas Locais: Primeira Fase [outubro 2021 – abril 2022] nas Dioceses e Conferências Episcopais Antes da Assembleia dos Bispos em Sínodo. Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos: Vaticano, 2021. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/wp-content/uploads/2021/09/PT-Vademecum.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022.
[1] Enfermeira, doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mestre em Gerontologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP), especialista em Enfermagem de Saúde Pública pela Unifesp e especialista em Mediação Familiar pela Associazione Azione Famiglie Nuove (Itália). Foi docente dos cursos de enfermagem e medicina da Universidade de Marília (Unimar). Atualmente, colabora com o curso de pós-graduação Mestrado Profissional da Faculdade de Medicina de Marília (Famema).
[2] Doutor em Filosofia do Direito pela PUC – SP. Pós-Doutorado pela Universidade La Sapienza, Roma. Líder do Grupo de Pesquisa GEDs – Direitos Fundamentais à Luz da Doutrina Social da PUC – SP. Professor na Faculdade de Direito, foi Chefe de Gabinete na PUC – SP. Foi Pró-Reitor de Pós-Graduação,Pesquisa e Extensão, Coordenador do Mestrado em Direito e professor no Centro Universitário Eurípedes de Marília (Univem). Membro fundador da União dos Juristas Católicos da Arquidiocese de São Paulo (UJUCASP).
[3] Palavra grega usada para descrever os diálogos feitos por Jesus Cristo no Novo Testamento. “Parrhesia” é o ato de falar com “coragem”, “falar tudo”, pois é a coragem de dizer a verdade.