13/05/2025

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Andando juntos: diversidade e autoridade dispersa como marcas anglicanas da sinodalidade

Andando juntos: diversidade e autoridade dispersa como marcas anglicanas da sinodalidade

E chegou a Cafarnaum e, entrando em casa, perguntou-lhes: Que estáveis vós discutindo pelo caminho? (Marcos 9,33)

Por Rev. Dr. Josué Soares Flores[1]

Artigo publicado originalmente na revista Ekklesía Brasil, edição de janeiro-abril de 2022, p. 40-42.

Foto imagem: Facebook.

A propósito da atual discussão sobre o caráter sinodal da Igreja proposto pelo papa Francisco, gostaria, como sacerdote e teólogo anglicano, contribuir ecumenicamente para o debate à luz da experiência e compreensão teológica da Comunhão Anglicana. A palavra “sínodo”, do grego “sýnodo”, significa “andar com, andar junto” ou “caminhar acompanhado”. Esta expressão, embora não seja oriunda das Sagradas Escrituras, já está presente desde os pais e mães da Igreja Primitiva. O nascimento da Igreja – ekklesía – propiciou o nascimento de expressões que, originais ou por empréstimo, deram um léxico de conceitos para compreendermos as relações comunitárias que eram estabelecidas pelas primeiras pessoas cristãs. Assim, a palavra “sýnodo” surge em um contexto de disputas das narrativas, isto é, sociologicamente, o cristianismo passa a buscar sua fonte de autoridade, aquela que poderia anatematizar hereges com o condão da autoridade e poder atribuído à sede episcopal. Surgem os patriarcados legitimados pela autoridade conciliar que, ao longo do tempo, irão aumentar em número e estabelecer uma hierarquia entre esses. Decorre daí que estamos construindo um léxico fundado em poder, autoridade e hierarquia.

Na epígrafe deste artigo, Jesus anda com seus discípulos ensinando e lhes diz algumas coisas que não são tão bem compreendidas por eles, e, em dado momento, há um distanciamento entre o mestre e seus discípulos, fato que será questionado pelo próprio Jesus ao chegar a Cafarnaum com a seguinte pergunta: “Que estáveis vós discutindo pelo caminho?” (Mc 9,33), e o silêncio entre eles é a escancarada vergonha de “cair em si” de que mediante a jornada comum, separaram-se de seu mestre a fim de discutir qual dentre eles seria o maior (Mc 9,34). Isso quer dizer que podemos nos distanciar do mestre no meio da caminhada, e quando isso ocorre – diodos, “caminho separado” –, a conversa é diabólica, no sentido etimológico da expressão, ou seja, conversa que nos divide. Assim, gostaria de propor como a Comunhão Anglicana construiu sua perspectiva própria de sinodalidade.

Autoridade Dispersa: exigência para andar juntos

A natureza do exercício da autoridade na Igreja associa-se ao estabelecimento de uma hierarquia da ordem clerical. Tal exercício e hierarquia deixaram à margem dos processos de escuta e diálogo, de decisão e realização, a comunidade de fiéis leigos. A palavra “leigo” vem do termo grego “laós”,que significa “povo”.Todos somos chamados para sermos o povo de Deus, clérigos e leigos, sem distinção. Mas durante a caminhada, distanciamo-nos de Deus, a fim de discutirmos nossas hierarquias. Constituída a hierarquia, que deveria basicamente ser de serviço, todo assunto concernente à vida da Igreja tornou-se assunto do clero, um seleto e pequeníssimo grupo que define quase tudo a respeito do que pensa e de como deve ser a Igreja.

 A Comunhão Anglicana, compreendendo o sacerdócio universal de todos os crentes como uma exigência da missão de Deus para a Igreja,no último século, construiu e tem vivido sob o carisma da Autoridade Dispersa, ou seja, o dom da autoridade é de toda a Igreja, não apenas de um ou de um grupo, mas de toda a Igreja. Em todos os organismos consultivos, executivos e legislativos, a Comunhão Anglicana tem constituído de forma paritária clero e leigos nos processos e instâncias da vida da Igreja. Não é algo simples nem fácil. Isso exige um esforço canônico em transformar velhas e arcaicas estruturas legislativas que eram surdas para a participação leiga em oxigenados e contextualizados cânones que contemplem a voz e a participação leiga em todas as estruturas. Também é necessário empoderar e conscientizar o leigo de tomar o seu próprio lugar de voz, depois de sucessivas gerações de anulamento e clerocentrismo. Quando todo o povo de Deus participa, o Espírito Santo concede o mais iluminado discernimento e sabedoria para a Igreja entender o espírito de seu tempo e dar respostas honestas e profundamente evangélicas a tais perguntas.

Autoridade e diversidade

 Como vimos dizendo, na esteira dos processos sinodais, os temas da autoridade e hierarquia sempre estão tangenciando tais discussões. Lembramos o que dissemos no início sobre a busca primitiva dos núcleos de autoridade patriarcal a fim de dissuadir as heterodoxias em flagrante continuísmo com as discussões dos discípulos a caminho de Cafarnaum. A busca de ter uma voz universal, soberana e autoritativa sobre todas as pessoas cristãs gerou cismas, exclusões e anátemas. Conviver com a diversidade de pensamento e aceitar a posição ou o lugar do outro são desafios que permanecem na contemporaneidade. A tentação pelo cancelamento do outro e de colocá-lo na subalternidade do mundo, da história e das narrativas que contam a salvação é nosso desafio a ser superado. A diversidade não se trata de um vale-tudo em perspectivas de fé e interpretação, mas de uma compreensão de dilatação do modo de ser Igreja que pode ser múltiplo, não apenas compreendendo nossas diversidades culturais, mas sobretudo e por meio delas, compreendendo as diversidades de interpretação possíveis sobre o evento crístico que as culturas impõem à narrativa bíblica.

 O anglicanismo, ao longo do último século, precisou aprender a conviver com as culturas dos povos da Commonwealthbritânica, de acostumar-se a ouvir outros idiomas e dialetos para além da anglofonia, de assumir convertidos não britânicos como legítimos e verdadeiros anglicanos, de decolonizar sua própria liturgia e teologia compreendendo a beleza e a profundidade das sabedorias dos povos. A uniformidade é uma tentação, mas a diversidade é um dom de Deus para a Igreja. O exercício de uma autoridade que imponha e cerceie limites e fronteiras a um mundo de pluralidades, não dialoga, não conversa, não caminha junto.

Conclusão

 A Igreja que preserva o carisma de caminhar junto com seu mestre, certamente terá sabedoria e discernimento sobre os ruídos cacofônicos e dissonantes que criam divisões e conflitos no mundo, e, quando caminhamos juntos com o mestre, não nos sobra tempo para especular as hierarquias celestiais, mas apenas há tempo para ouvir o que a divina Sabedoria quer nos ensinar. Assim, a sinodalidade da Igreja é um confronto constante com a tentação do poder da “mono-arquia”, da hierarquia de privilégios e não de serviço, a fim de juntar-se e unir-se ao laós de Deus, que é a própria Igreja, caminhando juntos, a fim de que a Igreja seja Una, Santa, Católica e Apostólica para que o mundo creia.


[1] O autor é sacerdote da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.

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