19/04/2025

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O Sínodo do “como”

O Sínodo do “como”

Por Airam Lima Jr.

Matéria publicada originalmente na revista Cidade Nova, edição de janeiro-fevereiro de 2024, p. 20-24.

Foto: Arquivo pessoal de Sônia Gomes de Oliveira/ Cidade Nova

Em outubro do ano passado, a Igreja Católica promoveu o trigésimo sínodo de sua história. Dessa vez, não foi um evento para tratar de um tema complexo para a Igreja, como foi o caso dos jovens, em 2018, nem para estudar uma região em especial, como aconteceu com a Amazônia, em 2019. Os 464 participantes debateram sobre o próprio debate, ou seja, o modo como a Igreja deve enfrentar seus desafios. Na política do papa Francisco, o método a ser adotado tem um nome: sinodalidade, que vem da própria palavra sínodo, uma expressão grega que significa “caminhar juntos”. O texto de apresentação do evento afirma que sua proposta é desenvolver um “processo sinodal” cuja finalidade “é muito mais de conceder a todo o Povo de Deus uma oportunidade de discernir juntos como seguir adiante, no caminho para ser uma Igreja mais sinodal a longo prazo”.

Para Francisco, “juntos” quer dizer “todos”, sem exclusões. Por isso, como destacou a imprensa, embora o colegiado tenha sido criado por são Paulo VI como “Sínodo dos Bispos”, para a Assembleia da sinodalidade, Francisco incluiu, entre os 365 membros com direito a voto, não só os prelados, mas também padres, diáconos, religiosos e leigos, entre os quais estavam 54 mulheres, uma novidade que chocou alguns membros da Igreja.

Entre os eleitores, havia duas leigas brasileiras. Uma delas era a presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB), a mineira Sônia Gomes de Oliveira, que viveu uma experiência “muito forte” nesse evento:

“A gente se reunia em grupos, em mesas redondas, onde estavam cardeais, bispos, leigos, lado a lado. Aí, estudava um trecho do Instrumentum Laboris [documento de base para os trabalhos do sínodo], fazia um momento de oração e, em seguida, cada um podia falar por quatro minutos, sem interrupção. Por mais que eu discordasse do que o outro tinha dito, eu não podia interromper a fala dele porque havia o respeito e a necessidade de escutar o outro. Depois que todo mundo falava, fazia-se novamente o silêncio, para você deixar que o Espírito de Deus pudesse falar, para que você pudesse dar a resposta adequada no tempo certo. Esse é o processo que é o desejo do papa Francisco para a Igreja no mundo: uma Igreja onde todo mundo tem direito à fala, de igual para igual. Não é uma Igreja piramidal, mas uma Igreja circular.”

“Eu vi o gelo quebrando”

Esse método de trabalho é de inspiração jesuítica – vale lembrar que Francisco é jesuíta de origem – e foi chamado, no documento-síntese da Assembleia, de “conversação no Espírito”. E produziu efeitos até surpreendentes. Ao final da assembleia, o secretário-geral do sínodo, o cardeal maltês Mario Grech, afirmou que uma das frases que permaneceriam gravadas em seu coração foi a de um bispo que comentou: “Eu vi o gelo quebrando”. “Nas mesas, as pessoas iam se soltando lentamente”, relatou.

Na verdade, a preocupação com a escuta do Espírito Santo já começara antes mesmo dos debates na sala Paulo VI. Durante três dias, os participantes do sínodo fizeram um retiro fora de Roma, (“um local onde não pegava celular”, destaca Sônia), em que eles, além de rezarem, já começaram a conviver em pequenos grupos, cada um com um orientador. “A questão do silêncio foi muito forte para mim” – comenta Oliveira – “porque, no silêncio, você consegue verdadeiramente escutar”.

Se esse processo de escuta ampla foi a grande novidade do sínodo, isso não quer dizer que os temas polêmicos ficaram de fora da discussão. O relatório-síntese da assembleia organiza essas questões em dois grupos: aquelas sobre as quais havia um consenso e aquelas que eram, sim, motivo de discordância e que, por isso, devem ser aprofundadas em um futuro mais ou menos breve. Um bom exemplo é o tema da participação feminina na Igreja. O documento reconhece a importância das mulheres e propõe que elas tenham uma maior participação nos processos decisórios da instituição. Lamenta ainda que elas sejam vítimas de machismo dentro da própria Igreja e admite que há posições bem divergentes sobre a possibilidade de a Santa Sé admitir o diaconato feminino: entre os participantes do sínodo, havia aqueles que consideravam essa possibilidade como “inaceitável” e os que viam nesse passo “uma resposta apropriada e necessária aos sinais dos tempos”. A questão é tão polêmica que esse ponto foi o que teve maior número de votos contrários na aprovação final, recorda Sônia Oliveira.

Questões novas e polêmicas

Não por acaso, um capítulo inteiro do documento-síntese é dedicado a esses pontos polêmicos. “Algumas questões, como as relacionadas com a identidade de gênero e a orientação sexual, com o fim da vida, com as situações matrimoniais difíceis, com as problemáticas éticas ligadas à inteligência artificial, são controversas não só na sociedade, mas também na Igreja porque colocam questões novas”, diz o texto. Ao ser perguntado pelos jornalistas sobre esses temas e as discordâncias entre os participantes, o cardeal Grech foi direto e sincero: “Isso não me surpreende. Somos uma família e devemos respeitar os passos de todos. Caminhamos juntos. Esse é o conceito de sinodalidade”.

Por outro lado, as convergências motivaram parágrafos de louvação ou mesmo de condenação. No primeiro caso, aparecem os pobres. Os participantes do sínodo deixaram muito claro que “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica” porque Jesus mesmo era pobre e caminhou com eles. Mas não entram nessa categoria somente aqueles que não têm recursos para uma vida digna. O documento lista também, entre outros, os povos indígenas, os migrantes, os trabalhadores explorados, os idosos abandonados e os que sofrem violência e abusos, inclusive dentro da Igreja e particularmente as mulheres.Para concluir, aponta  “os mais vulneráveis entre os vulneráveis: as crianças no ventre materno e as suas mães”.

“Cuidado: lidamos com pessoas”

Entre as críticas, uma que é muito forte no documento é a dirigida ao clericalismo, ou seja, o comportamento de alguns membros do clero que entendem sua vocação “mais como um privilégio do que um serviço, e se manifesta num estilo de poder mundano que se recusa a prestar contas”. Detalhe: essa atitude também pode estar presente nos leigos. “Sinodalidade não é compatível com clericalismo”, sentencia Oliveira.

O documento afirma que, tanto para combater o clericalismo como para construir a sinodalidade, é preciso formação dos católicos, pois é preciso mudar o modo de pensar. Para a presidente do CNLB, esse é uma experiência de conversão, que deve ser feita com serenidade. “Todo cuidado é pouco, porque estamos lidando com pessoas”, explica. O mesmo relatório menciona que a ideia de uma Igreja sinodal “suscita confusão e preocupações” entre muitos membros da instituição. E completa: “Precisamos compreender as razões da resistência à sinodalidade por parte de alguns deles [diáconos, padres e bispos]”.

O caminho é difícil porque, afirma Sônia Oliveira, a Igreja ainda tem estruturas muito pesadas. “A gente fica brigando para organizar a estrutura da paróquia, o conselho de pastoral, e acaba se esquecendo da missão”, exemplifica. “Mas a Igreja não pode estar centrada nela mesma. Ela tem que estar a serviço da missão, e a centralidade da missão é Jesus Cristo”. E onde está Jesus Cristo? “Nos pobres”.


Como Francisco mudou as regras

O Sínodo dos Bispos é uma instituição permanente criada pelo Papa S. Paulo VI em 1965. Na prática, ele exerce suas funções quando alguns bispos, convocados pelo papa, se reúnem em assembleia para tratar de um tema específico. O papa recebe o relatório final da assembleia e pode acatar ou não suas decisões.

Em 2018, o papa Francisco iniciou uma revolução nos procedimentos para o sínodo. Ele decidiu que os padres, diáconos e leigos das igrejas locais deveriam ser ouvidos para subsidiar os debates, trabalho que era normalmente feito pelas conferências episcopais, como a CNBB.

Para o atual sínodo, a mudança foi ainda maior. Francisco abriu a todos aqueles que não são bispos, inclusive leigos e mulheres, a possibilidade de participar e votar nas assembleias. Até então, quem não fosse bispo podia, no máximo, participar como consultor ou convidado, mas sem direito a voto.

Essas mudanças podem ter surpreendido muita gente, mas não o arcebispo de Trujillo (Peru), dom Miguel Cabrejos. Ele era presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano e do Caribe (Celam) em 2021, quando foi realizada a I Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, uma iniciativa do papa Francisco que pressupunha que todos os fiéis fossem ouvidos previamente – em especial “as periferias geográficas e existenciais da Igreja” – para que o que fosse discutido na plenária correspondesse ao sentimento do povo de Deus (Cidade Nova tratou desse evento na edição de julho de 2021).

“Tudo é um processo, um processo que começou há muito tempo”, declarou dom Miguel ao Vatican News, lembrando que a Assembleia Eclesial da América Latina foi “um testemunho autêntico de sinodalidade, em que 20% eram bispos, 20% sacerdotes e diáconos, 20% religiosos e religiosas e 40% leigos e leigas”. E essa experiência foi relembrada por muitos participantes do atual sínodo.


Só vai terminar em outubro

O Sínodo sobre a Sinodalidade, cujo tema é Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão, não se resume à assembleia ocorrida no Vaticano durante o mês de outubro do ano passado. Na verdade, ele começou em 2021, quando foi aberto o processo sinodal. Em um primeiro momento, para que se cumprisse a proposta de sinodalidade, as igrejas locais iniciaram um processo de escuta, que passou pelas fases diocesana, nacional e continental. Todo esse trabalho resultou na confecção de um documento, o Instrumentum Laboris, que serviu de base para os debates ocorridos no Vaticano e que constituíram, formalmente falando, a primeira sessão da Assembleia do Sínodo. O resultado desses debates foi consolidado num documento chamado Relatório de Síntese, que está disponível no site synod.va. Agora, ele deve ser novamente debatido nas dioceses. As novas contribuições sobre esse documento serão levadas a Roma para a segunda sessão da Assembleia, que será realizada em outubro deste ano. Portanto, se você quer contribuir para ajudar a construir um ambiente sinodal em sua paróquia ou diocese, esta é a hora.

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