19/04/2025

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Um caminho que se faz “juntos”

Um caminho que se faz “juntos”

Por Redação da revista Ekklesía Brasil

Entrevista publicada originalmente na edição da revista Ekklesía Brasil, de janeirio-abril de 2022, n. 4, p. 8-12.

Foto: Google Imagens.

A nossa convidada para a Entrevista desta edição, dedicada ao tema da Sinodalidade, é a irmã Maria Inês Vieira Ribeiro, presidente da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB). Natural de Gonçalves, Diocese de Pouso Alegre (MG), ela pertence à Congregação das Irmãs Mensageiras do Amor Divino. Tendo abraçado a vocação à vida religiosa há 52 anos, irmã Maria Inês assumiu a presidência da CRB em 2014, em substituição ao então presidente do organismo, ir. Paulo Petry, fsc, que precisou assumir o governo geral da sua congregação religiosa. Eleita em 2016, foi reeleita em 2019, cargo que – pelos estatutos da CRB – deverá deixar em julho deste ano. Nessa entrevista, irmã Maria Inês reflete sobre aspectos fundamentais que envolvem o caminho sinodal da Igreja hoje.

A Redação

A expressão sinodalidade tem ganhado cada vez mais espaço na Igreja hoje. O que a senhora entende por sinodalidade? O que, na sua opinião, devemos levar em conta quando falamos desse conceito?

Nós todos sabemos que sinodalidade significa “andar juntos”, caminhar na mesma estrada. Trata-se de um momento de encontro e diálogo com a finalidade de criar sintonia na busca de decisões. Devemos levar em conta que é uma expressão bastante utilizada entre nós da Igreja e que tem justamente esse sentido profundo de um caminhar todos juntos, isto é, pessoas de todas as vocações, de todos os níveis, frentes e realidades do povo de Deus.

Por que a sinodalidade não deve ser confundida com democracia?

A democracia é o regime político em que a soberania é exercida pelo povo, isto é, quando os cidadãos são detentores do poder e confiam parte desse poder ao Estado para que possam organizar e dinamizar a sociedade. É uma ideia bonita. Seria o ideal se essas forças políticas eleitas pudessem dinamizar realmente essa democracia, sonhada, querida e batalhada por todos nós. Quanto à sinodalidade, essa está começando a se enraizar na Igreja. Embora não seja uma questão nova, tem limites visíveis no que diz respeito ao caminhar de todo o povo de Deus, isto é, leigos, leigas, cardeais, bispos, consagrados, consagradas. Essa é uma realidade que está crescendo, tornando-se mais frequente, desenvolvendo-se na Igreja como modo de atuar, principalmente protagonizado pelo papa Francisco, a começar do próprio Vaticano, além dos sínodos dos bispos realizados em Roma. Se observarmos bem, a Igreja ao redor do mundo já tem passos dados que podem ser considerados como parte desse caminho sinodal. Basta olhar, por exemplo, a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ou, agora, com a realização da Conferência Eclesial da América Latina. Essas são iniciativas históricas e revelam uma busca sincera da Igreja de viver o caminho sinodal.

A julgar pelo que se tem dito a esse respeito, sinodalidade, na verdade, não se trata de algo novo na história da Igreja. Por que é importante falar disso neste momento? O que, para a senhora, levou o papa Francisco a dar força para a sinodalidade da Igreja?

Penso que o papa Francisco, quando esteve na Conferência Episcopal de Aparecida, assim como todos os bispos ali presentes, manifestou a preocupação com a concretização dos desígnios da Igreja estabelecidos no Concílio Vaticano II. Por isso, ele desejou que se realizasse essa assembleia da América Latina: para colocar em prática o que foi discutido em Aparecida. Ele, inclusive, enfatizou que não se tratava de fazer um novo documento. Além disso, Francisco assumiu seu pontificado praticamente na esteira de Aparecida, porque ele tem buscado, desde o início, prosseguir no diálogo com a sociedade. Ele não quer fazer esse caminho apenas com os bispos, os padres, os leigos engajados, mas sim com todo mundo. É o que vimos quando o papa Francisco saiu na sua primeira viagem e foi ao encontro dos mais frágeis, dos mais vulneráveis, como aconteceu com os náufragos, em Lampedusa. Por isso, o sínodo convocado para 2023 tem uma prerrogativa bastante forte e nova que é escutar a todos. Ele nos convida a não confundir isso com colegialidade episcopal. É preciso perceber o sentido teológico mais profundo da palavra “sinodalidade” e sua relação direta com palavras-chave, como protagonismo, santidade, espiritualidade. Para esse sínodo de 2023, o Papa escolheu três termos: comunhão, participação e missão. Ele afirmou que celebrar um sínodo é sempre bom e importante, mas isso só é verdadeiramente fecundo se esse se tornar a expressão viva do ser Igreja, de um agir marcado pela verdadeira participação. Isso não é uma questão de estilo, mas de fé.

Quais são hoje os obstáculos ao caminho sinodal da Igreja? Por quê? Certamente o clericalismo é um desses obstáculos…

É verdade. Eu estive na Assembleia Eclesial Latino-americana, na Cidade do México, e em muitas das nossas conversas de corredor, colocamos o fato de o clericalismo ser um obstáculo para o caminho sinodal da Igreja. É bom ressaltar que, nessa realidade, não estão incluídos somente os ministros ordenados, mas todos os leigos e as leigas, consagrados e consagradas, que acabam se tornando um obstáculo para o desenvolvimento da maturidade e responsabilidade cristã no seio da Igreja. Muitos leigos assumem uma postura de imobilidade, não questionam ou possuem uma formação frágil ou ainda têm um temor diante de um poder exercido com força. O clericalismo bloqueia os leigos na sua resposta de fidelidade ao Evangelho e os ordenados na força de serviço adequado à comunidade. O mau uso do poder favorece relações verticais, abusivas e até discriminatórias.

Quais são as condições e/ou exigências fundamentais, na sua opinião, para se percorrer esse caminho sinodal? Nesse sentido, o que a senhora considera imprescindível especificamente para o discernimento comunitário enquanto um momento importante do caminho sinodal?

O documento conclusivo da Assembleia Eclesial Latino-americana fala, em diferentes trechos, da necessidade de um esforço contínuo de conversão em diversos âmbitos da Igreja em favor de uma eclesiologia do Povo Deus, conforme o Vaticano II. Precisamos assumir isso em todos os âmbitos da Igreja e trabalhar essa perspectiva como base teológica para reformulação de todos os serviços eclesiais, incluindo a urgente atualização da ação do ministério ordenado em harmonia com a tradição da Igreja. Nesse sentido, é chave a reformulação da formação dos seminários e da vida consagrada com essa consciência de que somos Povo de Deus. Também é preciso dar outros passos concretos nas comunidades, movimentos, pastorais mediante a construção de planos de ação, fundamentados na espiritualidade que é própria de cada uma dessas expressões da Igreja.

Uma das formas de promover uma maior sinodalidade na Igreja é ampliar o espaço de participação e protagonismo de leigas e leigos – entre os quais se encontram as religiosas e muitos religiosos – e jovens na Igreja. De que maneira isso pode e deve acontecer?

Acredito que o caminho está na formação segundo a eclesiologia do Vaticano II. Além disso, é preciso ampliar a participação das organizações laicais nos conselhos, nas comunidades, nas paróquias. Veja, por exemplo, a relação com os jovens. Se toda a Igreja não se insere na realidade juvenil para entender a sua forma de ser, de viver, sua cultura, vamos perder os jovens no meio do caminho e, por isso, esse é um grande desafio. No âmbito da vida consagrada, é preciso abrir mais os espaços para realização de assembleias que avaliam as ações das nossas coordenações gerais e provinciais, isto é, possibilitar momentos de avaliação, de partilha, de crescimento, de modo a construir entre nós um espaço mais participativo.

A senhora poderia citar algum exemplo ou exemplos de iniciativas ou práticas que testemunham essa vocação de sinodalidade da Igreja?

Existem muitas realidades que já dão testemunho dessa vocação sinodal nas dioceses, paróquias, congregações. Eu gostaria só de citar um aqui que me veio ao coração. Em função dos esforços do papa Francisco em erradicar na Igreja a situação dos abusos sexuais de crianças, adolescentes e pessoas em situação de vulnerabilidade, no Brasil, nós da Conferência dos Religiosos do Brasil nos unimos à CNBB e, com a participação de alguns leigos, para dar início a um serviço de proteção aos vulneráveis, formação, escuta e denúncias no âmbito eclesial. Isso fez nascer o Núcleo Lux Mundi, com sede em Brasília. Esse foi um passo enorme, que já está chamando a atenção internacionalmente. Não é fácil, mas estamos crescendo na unidade. Agora mesmo esse núcleo está com a responsabilidade de fazer uma avaliação dessa caminhada nesses últimos três anos depois do lançamento do Motu Proprio do papa Francisco sobre o tema, conforme pediu o próprio Pontífice às conferências episcopais. No Brasil, acho que não conseguiríamos fazer essa avaliação sem o trabalho desse núcleo.

A senhora acaba de participar da Assembleia Eclesial Latino-americana. Que balanço geral a senhora faz dessa assembleia, especialmente na perspectiva da sinodalidade? O que a senhora acredita possa ser uma contribuição própria da Igreja na América Latina para esse processo sinodal?

Em primeiro lugar, a realização da assembleia já foi uma grande contribuição para o sínodo dos bispos. Agora, nós sabemos que esse é um caminhar juntos, um processo, que está amadurecendo como grande reforma que nasceu do Vaticano II. Foi a primeira vez que aconteceu uma assembleia eclesial na América Latina. Mais de 70 mil respostas do processo de escuta chegaram à Conferência Episcopal Latino-americana (CELAM). Pode parecer pouco para a América Latina e o Caribe, mas precisamos entender que não é de um momento para o outro que isso acontece. Além do mais, é preciso considerar que esse evento se deu em meio à pandemia de Covid-19. Todo esse processo foi feito on-line, o que facilita por um lado, embora a escuta feita presencialmente seja diferente. De qualquer modo, temos uma fotografia bastante importante da Igreja em nosso continente. Agora, precisamos considerar que vivemos uma crise intensa, a maior desde aquela da Reforma, vivida no século XVI e que levou à fragmentação do cristianismo. Essa crise teve início com a renúncia do papa Bento XVI. Já o papa Francisco tem sido muito corajoso, porque são tempos difíceis, de turbulências, disputa de poder, escândalos financeiros, abusos sexuais. Em uma perspectiva estrutural, a crise atual é fruto da disputa de interpretação a respeito do Vaticano II. Mesmo assim, o papa Francisco nos impulsiona a seguir em frente. Devemos ter paciência e, ao mesmo tempo, profetismo e fé.

A senhora dirige um organismo importante para a Igreja em nosso país, a Conferência dos Religiosos do Brasil. A CRB já realizou e realiza alguma experiência de sinodalidade?

Temos realizado essa experiência desde a fundação da conferência mediante a união de forças da vida consagrada para animar os religiosos, manter a sua identidade e favorecer a sua formação. Isso tem sido feito não por um grupo, mas por muitos grupos, de forma descentralizada, por meio das seções regionais da CRB. Nossas últimas experiências nesse sentido são de ampliação de redes e parcerias, como aconteceu com a Associação Nacional de Educação Católica. Também está nascendo uma associação nacional católica no campo da saúde. É claro que precisa de mais impulso ainda. Outro exemplo é a rede “Grito pela vida no Brasil”, formada por mais de 300 religiosos e religiosas – e que agora conta com leigos também –, que trabalha na prevenção e na denúncia do tráfico de pessoas e de órgãos. Existem experiências fortíssimas nesse âmbito. São religiosas e religiosos de congregações e carismas diferentes que se unem nessa rede e trabalham em conjunto por meio de um programa comum e com ações concretas. Além disso, existem comunidades intercongregacionais ao redor do Brasil, que realizam essa experiência de comunhão, como a que temos na sede da CRB, em Brasília. Também no Haiti surgiu uma experiência desse tipo, depois de um dos terremotos, no trabalho de assistência àquela população, sobretudo às crianças que sofrem com a desnutrição. Outro exemplo ainda vem do Acre onde um grupo de congregações se uniu para salvar um hospital público que estava por falir e fechar. Enfim, a CRB tem muitas experiências nesse sentido do caminhar juntos.

Todos os carismas presentes na Igreja podem contribuir à sua maneira para a construção do caminho sinodal. Ekklesía Brasil é uma expressão do Movimento dos Focolares cujo carisma pode ser sintetizado pela expressão Unidade. Como a senhora entende que pode ser a contribuição especial dos Focolares, do qual a senhora também participa, tendo em vista essa caminhada sinodal da Igreja?

Penso que na própria caminhada do Movimento já temos realizado esse processo sinodal. Nossos últimos congressos sobre pastoral e a própria revista Ekklesía Brasil são frutos dessa experiência de unidade, a despeito das dificuldades que enfrentamos hoje. Quando eu conheci o Movimento dos Focolares, me empolguei com a sua espiritualidade e desejei fazer parte desse carisma justamente pelo seu compromisso em favor da unidade. Por isso, passei a vê-lo como um carisma forte, realmente importante para a caminhada da Igreja, assim como para a experiência na minha própria congregação e, hoje, na CRB. O Carisma da Unidade me estimula a estar atenta ao diálogo. Por isso, os membros dos Focolares devem fortalecer as suas comunidades e abrir-se sempre mais aos outros, inserir-se nas diferentes realidades eclesiais. Eu sempre lembro que, estando em uma reunião, posso contribuir para que Jesus se faça presente ali espiritualmente e isso construa a Unidade entre os participantes. Para isso, bastam gestos simples como ser paciente e escutar, alertar a quem se exaltou ou fugiu à proposta daquele encontro. Quanto mais nos inserirmos no seio da Igreja, mais contribuiremos para que ela percorra seu caminho sinodal.

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